sábado, 21 de março de 2015

O povo da cruz e a cruz de Cristo: atração e repulsão

Por Leonardo Morais, Jr., OFA*

Há cerca de duas semanas o mundo tomou conhecimento da execução de 21 jovens cristãos egípcios pelas mãos do ISISI (Estado Islâmico do Iraque e Síria). O clima de indignação e repúdio espalhou-se rapidamente por todos os continentes logo que a organização terrorista divulgou o vídeo – produzido em alta qualidade – da decapitação de cada um daqueles prisioneiros. Nas legendas do vídeo, podia-se ver, em língua árabe, a “razão” ou o “motivo” de sua execução: “Povo da Cruz”. Isso me fez lembrar das epígrafes que os soldados romanos, por sugestão dos judeus, colocaram sobre a cabeça de Jesus, quando este estava dependurado na cruz: “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”. A morte do Messias foi, por assim dizer, identificada, ainda que jocosamente, com a sua missão e verdadeira identidade.

Entretanto, o que me chama à atenção, entre outras coisas, nesse triste episódio dos 21 mártires egípcios, é o modo como foram apresentados ao mundo pelos terroristas do ISIS: o “Povo da Cruz”!  Isso mesmo! É algo fascinante e edificante à fé, mas que pode soar estranho a muitos cristãos ocidentais, principalmente os evangélicos de linhagem pentecostal ou neo-pentecostal, herdeiros da tradição anabatista, a qual desde seu surgimento, tem se insurgido contra os símbolos cristãos tradicionais e adotado uma postura iconoclasta muito firme. Outra razão porque boa parte das igrejas e denominações desse segmento desprezam esses símbolos remonta aos idos do Brasil Império (meados e fim do século 19), quando aos cristãos evangélicos, já em plena atividade e expansão missionária em nosso território, não podiam construir templos ou usar símbolos que caracterizassem o “novo culto” como igreja. Nessa época a Igreja Romana era religião oficial, então nenhuma outra igreja podia se assemelhar a ela externamente. O resultado dessa proibição, somado ao espírito anti-católico dos missionários norte-americanos oriundos do sul dos Estados Unidos, foi o estabelecimento e o cultivo de uma mentalidade preconceituosa e iconoclasta para com tudo que aparentasse ser “católico-romano”. Assim as vestes litúrgicas, os vitrais, os ícones, o uso da cruz e a persignação, entre outras marcas históricas do culto e da piedade cristãs foram suprimidos da prática evangélica que se impôs pelo Brasil afora.

Todavia, enquanto que a crucifobia se instalou no inconsciente coletivo de alguns segmentos do cristianismo evangélico, para os demais ramos do cristianismo histórico, a cruz tem sido por dois milênios o símbolo ou emblema por excelência de sua fé. Por outro lado, infelizmente, em diversas igrejas e comunidades cristãs modernas insígnia da cruz tem sido desprezada e até substituída por símbolos de fé completamente alheios ao cristianismo. É possível, em muitas dessas igrejas e comunidades serem encontrados menorás (candelabros judaicos), estrelas de David nas paredes e tetos, bandeiras de Israel e da cidade de Jerusalém, líderes e leigos usando vestes e adereços judaicos, tocando shofar e tentando reproduzir cenas e festas típicas do judaísmo. Por vezes, diante desse quadro, ficamos na dúvida se, na realidade estamos ou não em uma igreja cristã genuína.

Ao serem questionados acerca do não-uso da cruz – e de outros símbolos tipicamente cristãos – alguns líderes e leigos dessas comunidades apresentam, quase sempre, dois tipos comuns de respostas: 1) “a cruz é símbolo de maldição” e 2) “não usamos pois é associação com a Igreja Católica Romana. 3) “o uso da cruz é uma prática supersticiosa”.

Bem, em resposta poderíamos fazer as seguintes considerações:

Em primeiro lugar, a cruz, embora tenha sido o instrumento de tortura e morte de Nosso Senhor, ganhou um novo significado à luz da obra redentora de Cristo. Foi na cruz que Cristo cumpriu os desígnios salvíficos de Deus. Ademais, não é possível encontrar, nas Escrituras, qualquer passagem que diga que a cruz (ou o “madeiro”) seja maldita. Na realidade, a bíblia declara o seguinte: “está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro”. Ou seja, quem está no madeiro é que é maldito, e não o madeiro em si. São Paulo nos diz que Jesus Cristo a si mesmo se fez maldição em nosso lugar! Sofreu todo o sofrimento que era nosso e recebeu em si toda a condenação que era nossa e desde então simboliza nossa completa absolvição das penas da Lei, é o maior símbolo da redenção dos eleitos de Deus.

Em segundo lugar, o uso do símbolo da cruz é tão antigo quanto a formação das primeiras comunidades cristãs. Alguns Pais da Igreja, como Tertuliano de Cartago e Hipólito de Roma, já nos séculos II e III respectivamente, já faziam menção à persignação (fazer o sinal da cruz sobre si mesmo), como práticas dos cristãos primitivos em forma de auto-identificação com a paixão do Senhor. Também, São Clemente de Alexandria, um representante da igreja oriental, no século III, chamava a letra T (tau), símbolo da cruz, de “figura do sinal do Senhor” (Stromateis, VI 11). Dessa forma, fica bem evidente que o símbolo da cruz era universalmente reconhecido pelos cristãos primitivos.

Em terceiro lugar, um símbolo não é a coisa em si mesmo, mas nos “lança” ou remete àquilo que ela simboliza. Ou seja, no caso da cruz, não devemos tê-la como se fosse a realidade significada, ou seja, como se fosse o próprio Senhor morto encerrado num objeto. É bem verdade que há distorções e abusos no uso do símbolo da cruz. Há quem venere e cultue o objeto em si. Há quem lhe atribua poderes e virtudes miraculosas. Práticas semelhantes, como uso supersticioso e banal de óleos ungidos, de amuletos judaicos, de palavras-passes (p.e., “paz do Senhor”), palavras de ordem ou jargões característicos (“tá amarrado”, “eu decreto”, “o sangue de Jesus tem poder”, etc.) também são bastante difundidas em algumas igrejas cristãs, porém igualmente condenáveis, e nada disso está de acordo com a fé cristã biblicamente fundamentada, que nos traz à memória, constantemente, as palavras de Jesus: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto.” (Mt 4:10). 

*Leonardo Morais, Jr., é frade da Ordem Franciscana Anglicana – OFA é responsável pelo Ponto Missionário Anglicano de Sto. Estevão Mártir, situado no Bairro São Miguel, Francisco Beltrão - PR.


terça-feira, 23 de abril de 2013

Culto é... Missão

Uma leitura sumarizada do capítulo Dirigentes do culto, do livro, YOUNGER EVANGELICAL, de Robert Weber

 

PARTE  I


Weber faz uma análise sobre o tipo de culto que a geração norte-americana, que hoje tem seus vinte e poucos anos, está desejando que aconteça nas igrejas evangélicas. Ele chama este grupo de jovens de “os mais novos evangelicais”, para diferenciá-los da geração pós anos 60, que desenvolveu o chamado “culto contemporâneo”, definido por ele, sinteticamente, como  “louvorzão e sermão”. Segundo suas observações e pesquisas, existem três tendências no culto destes jovens: uma reação ao culto de entretenimento, um desejo de uma experiência genuína na presença de Deus e uma restauração de elementos litúrgicos do culto.

REAÇÃO AO CULTO DE ENTRETENIMENTO

Em 1999, o autor fez uma pesquisa entre os alunos , que eram dirigentes de culto, do Instituto de Estudos de Liturgia da Universidade de Wheaton. Aplicada a 176 jovens, representantes de 41 denominações, 14 países e 38 estados americanos, ele chegou à conclusão de que estes jovens estão querendo um culto centrado na pessoa de Deus, que enfatize os seguintes aspectos: encontro genuíno com Deus; comunidade genuína; conteúdo e profundidade; mais freqüência na comemoração da ceia do Senhor; sermões desafiadores e mais uso da Bíblia no culto; participação (entenda-se “da congregação”); uso criativo dos sentidos e de elementos visuais; quietude, caracterizada pela inclusão de música mais contemplativa e tempo para reflexão pessoal e quieta diante de Deus; foco na transcendência de Deus.

É uma cultura que está cansada de barulho, desejosa de se afastar das falsidades e artificialidades. Está procurando um encontro autentico com Deus, com profundidade e conteúdo, ansiosa por uma contemplação de quietude e de espiritualidade

Weber segue comentando sobre as tendências do pós-modernismo nas igrejas, com uma forte reação aos cultos de entretenimento da geração anterior. É uma cultura que está cansada de barulho, desejosa de se afastar das falsidades e artificialidades. Está procurando um encontro autentico com Deus, com profundidade e conteúdo, ansiosa por uma contemplação de quietude e de espiritualidade, movida pela comunicação visual e tátil. Não é uma reação à banda, ou ao teclado, ou ao piano ou ao órgão. O que querem é um encontro com Deus no culto que traga mudança de vida.

O DESEJO DE UM ENCONTRO COM A PRESENÇA DE DEUS

No século XX, uma grande parte das pesquisas acadêmicas foi realizada acerca do assunto: Como podemos experimentar a presença de Cristo no culto? Estudos recentes sobre liturgia afirmam primariamente que a presença de Cristo é uma experiência que se dá no ajuntamento de pessoas. Os mais novos evangelicais estão redescobrindo que o Deus que está presente em toda a criação torna-se intensamente presente no nosso culto por meio dos sinais e símbolos.

Os mais novos evangelicais, diferentemente dos evangelicais pragmáticos, estão reintroduzindo a leitura da Bíblia no culto, e os sermões têm mudado seu foco do terapêutico para serem mais ensinos das Escrituras.

O símbolo principal da presença de Deus é a assembléia de centres reunida. Dentro desta assembléia os principais símbolos da presença de Deus são expressos no batistério, no púlpito e na mesa da ceia. O batistério está lá porque serve como lembrança de que fomos batizados na more e na ressurreição de Jesus. O púlpito simboliza a presença de Deus mediante a Palavra. A Palavra foi trazida à existência pela ação do Espírito Santo que agora traz a presença de Deus até nós pela leitura das Escrituras e pela pregação. Os mais novos evangelicais, diferentemente dos evangelicais pragmáticos, estão reintroduzindo a leitura da Bíblia no culto, e os sermões têm mudado seu foco do terapêutico para serem mais ensinos das Escrituras. E então tem a ceia do Senhor. À mesa, por meio do pão e do vinho, entramos na presença de Deus, que se torna vital e intensamente pessoal. Na sua presença, recordamos a sua vitória sobre as forças do mal e somos cheios de poder para seguirmos e vivermos esta vitoria sobre o mal que também nos rodeia. Numerosos jovens evangelicais vêem a ceia como um elemento necessário do culto completo e gostariam de resgatar a comemoração semanal.


domingo, 22 de abril de 2012

"Martinho Lutero pregando aos fiéis"


Esta é uma pintura intitulada "Martinho Lutero pregando aos fiéis" de 1561, ou seja, produzido apenas quinze anos após a chamada de Lutero para se ajuntar à Igreja Triunfante. Essa pintura é uma boa resposta aos que acusam alguns luteranos do século 21, que cultivam uma praxe litúrgica histórica, de estarem introduzindo práticas "romanistas" no culto, as quais Lutero e os Pais da Reforma haviam, supostamente, abandonado.

1. Constata-se que um crucifixo (não uma cruz “nua”) paira sobre o altar da Igreja Luterana.

2. Um bebê está sendo batizado de acordo com a agenda.

3. O sermão é por Lutero pregado a partir do púlpito, usando-se a Bíblia.

4. Paramentos são usados ​​no serviço divino, incluindo alva, casula, batina e sobrepeliz para a Santa Eucaristia (Comunhão).

5. É utilizado um cálice comum (não copos individuais).

6. Os fiéis ajoelham-se para receber o corpo e o sangue do Senhor.

7. A hóstia é recebida diretamente na boca, não na mão dos fiéis.


terça-feira, 3 de abril de 2012

PERSIGNAÇÃO: SINAL E MARCA, USO E ABUSO




Assinalar e marcar, desde muito cedo, são práticas encontradas dentro da religião bíblica. Quer nas tradições mais antigas registradas no Antigo Testamento, quer no Novo Testamento, quer na história prática da Igreja do período subapostólico, antigo, medieval e até o presente.

Como o tema é vasto e muito diversificado, este breve artigo se deterá ao sentido de “assinalar” e “marcar” na tradição bíblica e o uso da persignação dentro da tradição da Igreja. Procurar-se-á seu sentido de uso e o abuso feito deste sinal de fé, bem como o preconceito gerado pelo abuso do mesmo. Assim, o objetivo é buscar um sentido correto para esta prática bíblica e antiga.


1. O que é um sinal?

Antes de se investigar o uso dos sinais nas Escrituras e na tradição antiga da Igreja, torna-se necessário definir o que se quer dizer quando se utiliza o termo “sinal”. Assim, entende-se por “sinal” qualquer objeto, gesto, acontecimento ou coisa que se usa como menção de outro. O uso de exemplos pode melhor explicar esta definição.

Sinal da Cruz usado nas bênçãos do rito bizantino.
IC XC são as primeiras e últimas letras de IHCOYC 
XPICTOC (Iesous Christos - Jesus Cristo)
O melhor exemplo de sinal é a própria “palavra”. Uma palavra é um sinal linguístico que, não sendo a coisa em si, a representa. Se alguém diz (ou escreve) “casa”; tal junção de sinais gráficos (letras), formando fonemas (sílabas) que, ajuntados formam uma palavra (casa) não é um prédio feito para a habitação. Aqui “casa” é somente uma palavra mas, como tal, remete a quem a ouve (ou lê) a algo que não está presente e que, por seu uso, nos remete à coisa significada.

No estudo da comunicação, desde pequeno, se aprende que existem um significante (casa) e o significado (o prédio utilizado para a habitação). Assim, a palavra remete seu ouvinte (ou leitor) a algo além dela e maior que ela. O sinal linguístico, ou seja, a palavra é um símbolo, visto que remete a quem a ouve a algo outro, maior que ela: remete ao significado.

Serve de exemplo, também, “abraçar” ou “beijar”. Tais são os sinais gestuais. Estes dois gestos significam algo muito maior: afeto e/ou amor. Nos tempos dos Imperadores Romanos o sinal do polegar (para cima ou para baixo) representando: deixar viver ou fazer morrer. Outro sinal gestual é o “aperto de mãos”, ele pode significa fraternidade ou um compromisso firmado entre parte. Do mesmo modo, entre militares, a chamada “continência” etc.

Deixando de lado outros exemplos de sinais, pode-se dizer que os sinais guardam características próprias:

a) Servem para a comunicação;
b) Indica para algo maior e superior a ele;
c) Faz parte daquilo que significa;
d) Tornam presente algo ausente ou oculto;
e) Serve para mostrar e, ao mesmo tempo, esconder;
f) Necessita que se compreenda seu código de significação;
g) Percebe-se pelos sentidos.

Deve-se, ainda, destacar que certos sinais são marcas. Hodiernamente se vêm as chamadas “logomarcas” e “logotipos” que dão identidade visual a um produto, a um grupo de indústrias, a uma agremiação desportiva. Por serem importantes que a legislação criou a “Marca Registrada”. São sinais característicos e distintivos de um “nome”. A marca distingue e diferencia, na medida em que reúne em si as características daquilo que significa. Revela, assim, certo direito de propriedade, à individualidade e de pessoalidade. Ao se marcar algo se assinala de modo distinto, para que se caracterize de forma peculiar, aquilo que foi assinalado.

Pode-se fazer um Marco Público. Este servirá de memorial. Seu objetivo é fazer lembrar, trazer à memória, não permitir que se esqueça algo que está revestido de significado. Na Cidade do Recife, temos o “Marco Zero”. Ele indica o ponto inaugural da referida cidade. No Rio de Janeiro, temos o “Memorial Vargas” para lembrar a memória do político brasileiro. Nos túmulos são colocados Marcos denominados de “Epitáfios” ou “Lápide” para registrar a memória de uma pessoa falecida.

Os criadores de animais, quase sempre, marcavam em ferro seus animais, marcando-os para designar propriedade. Antigamente esta marca era feita em ferro quente. Hoje é uma plaqueta etiquetada com número (ou barra eletrônica), quase sempre presa na orelha do animal.

Já se permite, pelas exemplificações, entender melhor o sentido que se está dando ao Sinal e à Marca (enquanto sinal identificador) e seu sentido factual e simbólico. O mesmo costume pode ser encontrado nas Escrituras Sagradas.


2. A Bíblia e o uso de sinais e marcas

O termo “sinal”, originário para o português do latim “signum”, encontra-se na tradição do Antigo Testamento, quase sempre como “ôt” ou “sôd”. Estes termos, na Septuaginta, podem ser traduzidos por “mystérion” (sôd) ou “seméion” (ôt). Quando traduzido por “mysterion” tem o sentido de “segredo”. Em geral refere-se à Palavra de Deus, à revelação da Sua vontade, pois Deus esconde a Sua vontade dos ímpios e a mostra aos Seus escolhidos.

Quando traduzido por “seméion” pode ser entendido como “sinal” ou “marca” e, por vezes, como “milagre” (no sentido de sinal divino) e, ainda “penhor”. Vê-se que, quando aplicado a Caim (Gn 4.15), o sinal foi um penhor, uma garantia da proteção divina. Quando ligado a um ato extraordinário, é um milagre que confirma a fidedignidade da Palavra do Senhor (Is 7.14, “o Senhor vos dará sinal: Eis que a virgem conceberá...”). Foi assim no chamado de Moisés: Deus lhe conferiu sinais que deveriam atestar e comprovar seu chamado, sua missão e a Sua Palavra (Ex 4.8). Tais sinais são marcas, atestados, comprovação de fidedignidade. O mesmo entendimento os antigos tiveram com o Arco-Íris: sinal da aliança de Deus (Gn 9.13). Viram, na junção das nuvens de chuva com o sol, uma marca, um sinal divino de que o sol haveria de brilhar, ainda que houvesse uma forte chuva: a chuva passa, o sol vence e este é um sinal de Deus na criação.

Entretanto, a maior e mais conhecida marca utilizada pelo judaísmo foi a circuncisão. Marcava-se na carne o pertencimento ao povo eleito de Deus5. Um sinal, feito por meio de um corte na carne, marcando um alguém como pertencendo ao Povo de Deus e, assim, marcado para Deus como Sua propriedade (Ex 4.24-36; Js 5.2-9). Esta marca na carne servia de sinal: pertencer a Deus e estar sob Sua proteção, como membros do Povo de Deus. Esta marca está relacionada ao Pai da Nação que, para São Paulo, era o Pai do Crente: Abraão (Gn 17.9-14). Estar circuncidado é estar na Aliança feita entre Abraão e o seu Deus: “a Minha Aliança estará marcada na vossa carne e será perpétua” (v.13). Neste sentido, é feita sobre o corpo, como marca e sinal de algo maior que a própria marca, ou seja, a Aliança. O incircunciso não pertence ao povo, mesmo que tenha nascido de hebreus (v.14).

O costume de assinalar um indivíduo, um animal ou um objeto, tinha por objetivo destacar o domínio do superior, do dono ou do patrão. Assim, Samuel faz um sinal ao ungir Saul rei sobre Israel (1Sm 10.1), revelando que Deus o havia escolhido para o exercício da função (ungir com óleo é um sinal da escolha divina). O sinal indicava uma dupla função: a submissão e dependência do ungido a Deus como seu Senhor e, de outro, o direito de receber a proteção divina para exercer a função. Em uma das visões de Ezequiel sobre a destruição de Jerusalém, mas Deus haveria de não destruir os que fossem marcados na testa com a letra “tau" (um “T”; cf. Ez 9.4). O mesmo já havia acontecido no Egito quando, as casas marcadas com o sangue foram puladas pelo Anjo da Morte (Ex 12.26).

No Novo Testamento temos, p.ex., o “sinal de Jonas”, referido pelo Senhor para falar que somente a Sua ressurreição seria verdadeiro sinal confirmação e garantia Sua palavras. O Livro do Apocalipse fala que os eleitos têm as frontes “seladas” (7.3) sendo que cada um recebe o sinal de sua tribo (7.5-8). Isso contrasta com a “marca [sinal] da besta” (cf. 13.16-17). Os cristãos, provavelmente já fazendo uso do sinal indicado pelo profeta Ezequiel (um “T” na fronte; cf. Ez.9.4) entendiam que esta letra se referia, já no Antigo Testamento, a Cristo. Comprova tal ideia o uso do Sinal da Serpente levantada no deserto nos tempos de Moisés, utilizada por São João como símbolo de Cristo sendo levantado na Cruz (cf., Jo 3.14).

Letra "T" (Tau) em caracteres hebraicos moderno e arcaico.
Percebe-se neste último a forma semelhante a de uma cruz.


Os cristãos primitivos utilizavam-se de letras (hebraicas e gregas) para assinalarem-se, bem como para marcar seus túmulos. Já no próprio Novo Testamento, especialmente no Livro do Apocalipse, encontramos o Senhor, várias vezes, a dizer: “Eu sou o Alfa e o Ômega” (1.8; 21.6; 23.13). Estudiosos entendem que este uso não se refere a um helenismo, mas a uma tradição advinda do rabinismo, visto que o Profeta Isaías já se utilizava desta ideia para se referir a Deus (cf. 41.4; 44.6; 28.12).

Os primeiros cristãos chegaram mesmo a considerar o batismo como uma marca (podendo entender-se como sinal e penhor) da salvação8. Cristãos antigos, ainda na Palestina dos tempos do Novo Testamento, faziam tatuagens ou uma cauterização (com ferro quente) no ato do batismo. Entendiam ser este o “batismo de fogo”, numa interpretação literal das palavras de São João Batista (Mt 3.11)9. Existem, p.ex., várias interpretações relativas a esta afirmativa de São Paulo: “Quanto aos mais, ninguém me moleste; porque eu trago no corpo as marcas de Cristo” (Gl 6.17)10. Alguns entendem que são as marcas dos açoites, fustigação com vara, naufrágio e outras coisas que o Apóstolo sofreu em missão; outros apontam para a marca que o dono de escravo colocava sobre o mesmo, marcando-o como sua propriedade e que era utilizada pelos judeus-cristãos palestinenses (como o tao, “T”).

Em resumo, o ato de assinalar e/ou marcar não é algo estranho às Escrituras, quer na Antiga, quer na Nova Aliança. Seja por seu uso comum, seja por seu uso religioso e espiritual, marcar com um sinal representou nas Escrituras: pertença ao Povo de Deus e, assim, submissão ao Senhor e direito à Sua proteção. Além disso, serviu para registrar a fidedignidade da promessa e da Palavra Deus, sendo penhor da promessa ou da graça significada. A marca mais significativa e importante está na eleição e salvação, certeza de vida plena nas mãos de Deus.


3. O Sinal da Cruz e seu uso

Desde bem cedo os cristãos antigos associaram a cruz, que é um símbolo universal, Àquele que foi nela morto. No período inicial a representação de Cristo e da Cruz são representações do Glorificado. Ela não é o lugar onde Cristo foi suplicado, mas glorificado14. Isso se deve, no início, ao ambiente judeu-cristão onde, por respeito aos 10 Mandamentos, não se faziam pinturas humanas. Assim, representar a Cristo por meio da cruz, com sua vitória, era mais aceitável em tais ambientes. Somente na Idade Média é que a ideia de ressurreição e exaltação foi substituída pela ideia da morte e humilhação.

Porém, é mesmo a partir da definição da Doutrina da Trindade, que a cruz passa a ser muito mais valorizada como símbolo pelos cristãos. Talvez por influência de Constantino e o uso que fez das letras “chi” (que tem a forma de X – ou de uma cruz) e “rho” (que tem a forma de P), como seu brasão na luta por unir o Império Romano que, reza a lenda, foi lhe dada em sonho quando uma voz lhe disse: “In hoc signus vinces”. Mas o fato é que o gesto do Sinal da Cruz (a persignação) se faz acompanhada da afirmação “Pai, Filho e Espírito Santo”.

A Doutrina da Trindade não foi um consenso. Os que não aceitavam a deidade de Jesus e/ou do Espírito Santo, reagiram à doutrina. Dentro da Igreja estabeleceu-se uma luta para ser aceita a doutrina. Muitos gestos, músicas e outras coisas fáceis de aprender e guardar, foram criadas no Século V para auxiliar na pedagogia trinitariana. Por exemplo, temos o cântico do “Glória Patri”16, colocado ao final da leitura do Salmo como forma de lhe dar um colorido cristão e de se reafirmar a doutrina da Santíssima Trindade.

O uso da cruz como símbolo e, de modo igual, o “sinal da cruz” (a persignação) passa a ser incorporada a toda Igreja, primeiramente à Igreja Oriental e, posteriormente à Igreja Ocidental. Entretanto, já era de conhecimento e uso dos judeus-cristãos palestinenses como marca e sinal. Logo passou a ter uso na liturgia, permanecendo até os dias de hoje. Seguindo a tradição palestinense o sinal era feito somente sobre a fronte: ocasionalmente por gesto e, permanentemente por incisão ou cauterização.

Pelos motivos óbvios o sinal permanente foi trocado pelo gesto ocasional. Além disso, na forma usual de hoje, foi aumentado, fazendo-se inicialmente na fronte, depois no peito, por fim nos ombros esquerdo e direito, respectivamente.

Modo atual de se fazer o sinal
da cruz entre os cristãos bizantinos
A persignação é um modo de assinalar-se ou de assinalar outras pessoas e objetos. Ele guarda como sinal, os mesmos significados utilizados nas Escrituras Sagradas para outros sinais: penhor, confirmação, proteção divina, distinguir-se como povo de Deus e, principalmente, sinal de santificação, eleição e salvação. A cruz é o Sinal de Cristo. Assinalar-se com o mesmo é marcar-se para Ele, é confessá-lo como Senhor, é declarar dependência exclusiva d’Ele. Este é, pois, um gesto simbólico. Como qualquer símbolo, em si ele não é nada, não é aquilo que representa, mas, sim, aponta para o seu significado. Por isso, com óleo, no Santo Batismo e na Confirmação, se assinala a fronte do batizando, dizendo: “Eu te assinalo com a Cruz, o sinal de Cristo”.

Este gesto significa que aquele, aquela ou aquilo que o recebe passa a pertencer a Cristo. Significa também estar assinalado, marcado, com o Seu sinal. Tal gesto simbólico é, assim, um gesto litúrgico. Não somente no Batismo e na Confirmação, mas em outras partes da liturgia ele é repetido. O Culto inicia com este sinal, pois é feito “Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Utiliza-se também o gesto, neste caso o Bispo ou o Presbítero sobre a congregação, quando da absolvição dos pecados, visto que o sacerdote representa a Cristo e absolve em Seu nome. Na sagração de objetos, muito especialmente os elementos eucarísticos, faz-se o sinal da cruz sobre os mesmos, como representação de sua santificação; por este gesto são retirados do uso comum para o uso santo. Por fim, ao encerrar a liturgia, o ministro envia o povo de retorno ao mundo, para ser testemunha de Cristo, abençoando-o com o sinal de Cristo.


4. O Sinal da Cruz e seu abuso

Como se viu, um sinal simbólico nada é em si. Somente serve enquanto meio e instrumento de ajuda para a sua relação com aquilo que ele significa. Se alguém faz um cumprimento de mãos para selar um acordo de cavalheiros, mas lá dentro sabe que não o cumprirá, tal gesto é nulo. Se alguém abraça ou beija, mas está traindo aquele a quem dedica este gesto de afeto, tal gesto é nulo e mesmo odioso, como o fez Judas com o Senhor.

O mesmo acontece com o Sinal da Cruz. Ele é um gesto simbólico e litúrgico. Ele quer significar submissão a Cristo e mostra que um alguém pertence a Nosso Senhor Jesus Cristo. O mesmo se pode de seu uso sobre os objetos litúrgicos: o santuário, os vasos sagrados, os elementos sacramentais. Quando recebem o sinal da cruz, significa que estão separados do uso comum para um uso santo. O gesto não torna as coisas santas, mas indica o seu uso sagrado.

Ora, todo símbolo revela algo oculto. Ele significa algo que não se pode ver. A circuncisão era um sinal externo, mas os profetas alertam que a verdadeira circuncisão é a do coração. O mero sinal externo nada significa se não existir o correspondente interior. Esta foi a tentação de Israel com a marca externa da circuncisão, amplamente denunciada e combatida pelos profetas (Jr 4.9; 9.24). De nada adiante estar com a marca externa se não existir a interna (cf., Dt 10.12-22).

A exortação de Jesus Cristo e de São João Batista aos escribas e fariseus está na mesma linha dos profetas: “Deus pode fazer suscitar destas pedras filhos a Abraão” (Mt 3.9; Lc 3.8; Jo 8.39). O fato de estar circuncidado em si, nada significa se não se tem o correspondente disso no coração. O uso deste sinal externo torna-se supersticioso, mágico e um mero amuleto, perdendo o seu sentido real.

Este tem sido o abuso do Sinal da Cruz. Ele vem perdendo o seu significado e se tem transformado em um amuleto. Faz-se do mesmo um uso supersticioso, como se o gesto, em si, correspondesse a algum tipo de proteção contra males, moléstias, físicas ou espirituais. Este abuso mágico desvaloriza totalmente o significado simbólico do gesto, fazendo com que muitos, para não se associarem a estes elementos supersticiosos, o tenham abandonado e mesmo rechaçado.

Deve-se ter em mente que seu uso, antigo e tão significativo para a Igreja, conforme significação bíblica própria, somente torna-se superstição e amuleto por falta de compreensão e de ensino correto. Trocando em miúdos: a culpa deste abuso se encontra na docência da comunidade. Sem ensino o povo cai. Sem correção o povo erra. Abandonar seu uso é mais fácil do que ensinar e educar para a fé.


Conclusão

Na tradição anglicana se repete “Lex Orandi, Lex Credendi”. Isso significa que aprendemos a fé na liturgia, por meio do modo como estamos, juntos, orando. Sendo o sinal da cruz um gesto de uso litúrgico, entende-se que é pela liturgia que se deve resgatar o seu uso correto e seu significado espiritual.

As diferentes edições do LOC pelo mundo podem ou não indicar, pelo uso do símbolo … ali se deve fazer o Sinal da Cruz. Como pode ou não indicar o uso das vestes litúrgicas, sem o embargo de seu uso correto, conforme a tradição e o ethos anglicano. A questão é que os símbolos e uso guardam seu significado simbólico, visto que a liturgia, como um todo, é uma linguagem simbólica e que apela a todos os sentidos naturais do ser humano: audição, visão, tato, paladar e olfato.

A Igreja Primitiva, herdeira da tradição judaica, deu muito valor à Palavra, ou seja, ao falar e ao ouvir. Já no Shemá está ali determinado como principal este sentido humano: Ouve, ó Isarel... (se há quem ouve uma fala, pressupõem-se existir um alguém que fala). Além disso, a severa proibição de fazer-se qualquer imagem de animais, plantas, seres inanimados e, principalmente, de pessoas, inibiu em Israel e em sua tradição litúrgica, p.ex., o sentido da visão. Surpreende, assim, que os profetas e apocalípticos tenham apelado de modo fortíssimo para as “visões”.

A Reforma da Igreja fez uma severa crítica do uso dos sentidos na liturgia, mas certas tendências acabaram por quase retornar aos tempos anteriores à Igreja primitiva, transformando-se em sinagogas cristãs, no que se refere ao uso dos sentidos na liturgia. Como diria Dom +Robinson Cavalcanti: “quatro paredes caiadas e um sermão”. Tal postura, racionalista, a apelar somente para a o verbalismo, desprezou o visual e as expressões corporais que fazem parte da composição humana. O ser humano torna-se mutilado em certas expressões litúrgicas protestantes.

Mas a liturgia não é somente discurso. O santuário não é um parlamento ou uma sala de aulas. A liturgia existe para a celebração. Paulo exorta aos romanos assim: ...apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.1-2).

Nota-se que Paulo convida os crentes a apresentar o corpo. O corpo é a forma pela qual o ser humano se expressa neste mundo. Mas o corpo tem muitos modos de expressar-se, assim, o modo correto de expressão no culto18 a Deus é o racional. Cristo, na cruz, ofereceu Seu corpo a Deus, em um culto perfeito. O culto verdadeiro de quem professa fé em Jesus Cristo passa pelo nosso corpo e pela nossa razão, tendo no corpo o modo de nos expressarmos racionalmente.

Quando Deus viu o mundo, sem forma e vazio, conferiu ao mundo sentido e razão. Como fez isso? Colocando cada coisa na sua devida ordem. Ordenar as coisas é, na verdade, torná-las razoáveis, é dar-lhes sentido, razão, ou seja, forma. O termo usado por Paulo no texto, traduzido por racional, em grego é logikhn (= logike, ou seja, lógico). A origem da palavra é o termo logos (=lógos, que quer dizer palavra). A forma de cultuar a Deus tem por modo a seguinte forma: uma palavra ordenada, coerente, com sentido, lógica, que se expressa por meio razoável através do corpo que Deus nos concedeu. Por isso Paulo, falando aos Coríntios sobre o culto, exorta-os a fazerem tudo em ordem, visto que Deus não é de confusão, e sim de paz (1Co. 12-14).

Ordenar é tornar as coisas com sentido razoável. Vê-se, pois, que o aspecto da forma está ligado diretamente ao modo de se ordenarem as coisas no culto. De fato não existe sentido sem ordem e, sem ordem, não há nada razoável. O culto é expressão do ser da Igreja, de modo razoável, que nada mais é do que uma ordem que evita confusão e torna tudo claro. Por isso Paulo dirá para os crentes não se com-formarem. A preocupação aqui não é outra senão com a forma do culto para que o adorador experimente qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Para tal esta ordem deve passar por uma lógica, de palavras com sentido do corpo humano, e que não repita a forma sem sentido e destituída de razão deste século. Por isso, exorta: transformai-vos.

Os reformados deram grande ênfase à lógica e à razão, mas deixaram de ser razoáveis ao desprezar que é por meio do corpo que o ser humano presta a adoração. O corpo não é somente audição, nem somente se expressa pela fala. Por isso os outros sentidos do corpo humano devem, de modo razoável e lógico, fazer parte da liturgia, sob pena de termos um ser humano mutilado na celebração.
Muitas vezes, e sem perceber, os cristãos se utilizam de expressões corporais e de gestos com o corpo, na adoração: a genuflexão, as mãos postas, as mãos em concha para receber a Eucaristia, o abraço, ficar em pé, sentar. Isso mostra uma linguagem corporal, intuitiva, sem palavras, mas eloquente e que auxiliar a participar do Mistério21. Sendo Deus este Mistério, sempre será mais razoável experimentá-lo do que entendê-lo. Para uma perfeita experiência é necessário que os sentidos do corpo estejam totalmente envolvidos na liturgia.

Um gesto antigo e tão significativo como o Sinal da Cruz, faz parte deste universo simbólico, corporal e repleto de significado que não pode estar fora da liturgia e da vida espiritual de um cristão. O Sinal da Cruz significa que algo ou alguém pertence a Jesus Cristo. Significa que alguém foi separado do mundo para pertencer ao povo de Deus. Por isso, antes de ser um gesto de mera proteção pessoal, a persignação representa um compromisso: submissão a Deus por meio de Jesus Cristo. É a confissão de que alguém está sob o Senhorio de Jesus Cristo, tomando a sua cruz e seguindo-O (Mt 16.24).

Na persignação se faz o sinal da cruz. Isso significa que aquele que se persigna está a serviço da Cruz de Cristo. Torna-se o que no passado se dizia ser um “cruzado”. Um soldado em luta pelos valores cristãos. Um soldado sob o comando de Cristo. Um soldado disposto a combater o bom combate. Sob o signo da Cruz é que o cristão vive no mundo, dando o seu testemunho e realizando as obras de Cristo. Torna-se, pois, uma nova pedagogia da cruz de Cristo, para um melhor conhecimento do significado da persignação.

Isso deve iniciar pela liturgia, passando pela teologia e, finalmente, chegando à práxis cristã no mundo. Não existe práxis sem cruz, nem cruz sem práxis. A cruz é, na verdade, a consequência da práxis. Jesus foi crucificado por causa do que disse e fez. Por causa de Suas Palavras e de Sua prática, teve como coroamento a crucificação. A persignação deixará de ser superstição e mero amuleto, quando se resgatar a verdadeira práxis cristã. Quando o púlpito deixar de ser mera auto-ajuda e passar a ser uma qualificação para a ação cristã no mundo, o sinal da cruz há de se tornar significativo e repleto de conteúdo para aqueles que agem por meio da fé.

Deus permita à Sua Igreja conhecer e entender o sinal de sua marca: Em nome do … Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amém!

Rio de Janeiro, 29 de março de 2011

Ven. Arc. Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes+, OFA
Arcediagado Sul-Sudeste – 2ª Região Eclesiástica
Igreja Anglicana – Diocese do Recife

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ministério e Santa Eucaristia: Igreja Alta x Igreja Baixa



Dois padres anglicanos se ofereceram para serem filmados celebrando a Eucaristia. Um pertencente à tradição da Igreja Baixa, e outro da tradição da Igreja Alta. Nas encenações foi utilizado o rito da Oração Eucarística 1 do Book of Alternative Services (1985), da Igreja Anglicana do Canadá. Participaram os reverendos Canon Travis Enright, Vigário da Catedral de Todos os Santos, Edmonton e e Nick Trussell sacerdote missionário para o Sínodo da Diocese Anglicana de Edmonton.

Filmado na The Cathedral Church of All Saints, Edomontn, Canadá

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A Festa dos Foliões e a Tristeza Protestante



Tira o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor.

Minha velha Vovó repetia, por vezes, um adágio popular repleto de sabedoria: “Não é por que um burro dá um coice que se cortam as suas patas!” Na verdade é uma espécie de resumo de um fundamento básico de qualquer boa análise crítica para que não se caia na armadilha metonímica: confundir a parte com o todo.
Harvey Cox em seu livro A Festa dos Foliões, muito importante para quem deseja entender o valor da liturgia, faz uma análise do lúdico e de seu valor para a vida em sociedade, bem como para o indivíduo. Na verdade é uma aplicação dos conceitos utilizados por Johan Huizinga no livro Homo Ludens e, em certo sentido, por Pierre Bourdieu em Economia das Trocas Simbólicas. 
Cox conjuga os sentidos do “jogo” e do “brinquedo” de Huizinga com a análise de Bourdieu da teoria da religião de Max Weber. Uma mistura do valor da celebração, da festa e do lúdico para a saúde pessoal e social, bem como a crítica de um espírito, equivocado, e que somente valoriza o trabalho e a produção como responsáveis pelo bem da sociedade e do indivíduo.
O protestantismo, marcadamente o puritanismo, produziu uma religião cuja ética básica para o indivíduo encontra-se no trabalho e na produção. Por isso, fez uma severa e prejudicial mutilação litúrgica, desvestindo-a dos símbolos, da mística, da arte sacra, resumindo-a, como muito bem disse o Bispo Dom +Robinson Cavalcanti a “quatro paredes caiadas e um sermão”.
Tal somatório gerou uma ética que hiperbolicamente valoriza o trabalho e desvaloriza o lúdico. Nas terras deste Brasil, tal mentalidade, empobrecida pela falta de formação intelectual, quer dos leigos, quer do clero, gerou uma visão empobrecida e falsa e do mundo e do ser humano. Esta visão de mundo e do ser humano fica clara e transparente nas análises “críticas” da maior festa popular do mundo: O Carnaval.
Estas análises acabam pecando no erro que minha vovó desejava que eu, menino, sem sabedoria, não cometesse: a armadilha metonímica. Esquecem que o sério e determinado Dom Quixote, em sua cruzada moral e cavalheiresca, não existe sem o tolo e bufão Sancho Pança. O ser humano é, na verdade, um somatório destes dois símbolos. Ele se pensa como um cavaleiro cheio de nobreza e em busca de altos ideais, mas é uma criança simples e, por vezes, tola, que necessita expressar-se, brincar e se divertir. E, presas na armadilha, as análises condenam o todo por causa dos excessos da parte.
Se desejamos saber se este método está correto (julgar o todo pela parte), basta aplicá-lo a outras análises. Vejamos: cultos neopentecostais exploram as pessoas, logo, todos os cultos são explorações; meu marido me traiu, logo, todos os homens são adúlteros; um padre abusou de uma pessoa menor de idade, logo, todos os religiosos são pedófilos. E se poderia aplicar “ad infinitum” o método e sempre ele se revelaria falso e com conclusões falsas. Justo por que, em lógica, não se aplica ao geral o que é apanágio do particular. Tal análise ou juízo é sofismático.
Entretanto, tal sofisma, confirma um dos fundamentos  do mutilado protestantismo brasileiro: a cultura está sob o domínio do diabo. Lutero pôs fim aos conventos, ao celibato do clero, recolocando a vida eclesiástica de volta ao mundo. Mas o estranho protestantismo brasileiro “demonologizou” a cultura, criando uma área de administração para o diabo no mundo. Por isso a armadilha metonímica tem lugar analítico entre evangélicos e encontra respaldo de verdade no coração dos crentes. A falsidade ganha foro de verdade por causa da estrutura capenga do protestantismo brasileiro.
Os excessos do Carnaval não roubam o seu valor lúdico, nem os benefícios do brinquedo para a saúde mental, nem da fantasia para a sublimação. Nossa cultura é alegre, festiva, quase infantil em suas expressões de beleza. Não há mal no Carnaval. Mal é sempre o coração ou a mente: “tudo é puro para os puros” (Tt 1.15). E, tal maldade, não necessita do Carnaval para ser e se expressar. Ela pode estar revestida de símbolos e cânticos sagrados e ser tão ou mais perversa do que um brinquedo, uma dança, uma expressão lúdica e popular. Está no silêncio diante da injustiça ou no bem que não se faz por covardia e interesse.
Não se realiza qualquer inculturação, conforme exige o ethos anglicano, demonologizando a cultura brasileira. Nem se pode condenar o sorriso de muitos por causa da dor de alguns. Seria como tornar a faca um instrumento criado pelo diabo, somente pelo fato de um perverso assassino tê-la utilizado para dar vazão à maldade de seu coração. Penso ser o tempo de resgatar a beleza da festa, o valor do lúdico e integrar o anglicanismo na cultura brasileira.
Um abraço fraterno,
Ven.Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes+, ofa